Juiz das Garantias no Sistema Penal Brasileiro

Entenda o papel do Juiz das Garantias no processo penal brasileiro e as recentes decisões do STF

O legislador introduziu a figura do Juiz das Garantias no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), que alterou o Código de Processo Penal (CPP). Com essa medida, buscou-se preservar a imparcialidade do magistrado responsável pelo julgamento, já que, ao impedir seu contato com a fase investigativa, evita-se que ele tome conhecimento de elementos que possam influenciar sua decisão. Assim, o legislador procurou garantir maior equidistância entre as partes, além de fortalecer os princípios do sistema acusatório e assegurar um processo penal mais justo.

Conceito e Finalidade

O Juiz das Garantias é o magistrado que atua exclusivamente na fase de investigação criminal, sendo responsável por zelar pela legalidade do procedimento, bem como pela proteção dos direitos fundamentais do investigado. Adicionalmente, em razão dessa atuação específica, ele não participa da instrução e do julgamento do processo, o que evidencia a intenção de evitar a chamada “contaminação cognitiva” – conceito baseado na teoria da dissonância cognitiva, segundo a qual, diante do contato prévio com os elementos da investigação, o juiz tende a adotar a versão apresentada inicialmente pelas autoridades investigativas, ou seja, pela polícia e pelo Ministério Público.

Atribuições e Competências

As atribuições e competências do Juiz das Garantias estão previstas nos artigos 3º-A a 3º-F do CPP, com alterações promovidas pelo Pacote Anticrime e interpretação dada pelo STF. Abaixo, uma explicação detalhada:

Principais Atribuições

  1. Atuar exclusivamente na fase de investigação: Ou seja, ele não julga o processo, garantindo que os atos investigatórios respeitem a legalidade e os direitos do investigado.
  2. Controlar a legalidade da investigação: Isso inclui verificar se a atuação da polícia e do MP segue os preceitos legais.
  3. Zelar pelos direitos fundamentais do investigado: Por exemplo, direito de defesa, contraditório e devido processo legal.
  4. Decidir sobre medidas cautelares: Tais como prisão preventiva, quebra de sigilo bancário e interceptações telefônicas.

Casos em que NÃO se aplica o Juiz das Garantias

1. Infrações de menor potencial ofensivo

São os crimes cuja pena máxima não ultrapassa 2 anos, como previsto na Lei nº 9.099/1995 (Juizados Especiais Criminais). Nesses casos, o procedimento é simplificado e não há fase de investigação formal que demande a atuação do juiz das garantias.


2. Processos de competência originária dos tribunais

Quando autoridades com foro privilegiado são investigadas (como governadores, parlamentares ou desembargadores), o julgamento cabe diretamente a tribunais superiores (ex: STF, STJ, TRFs ou TJs). Nesses casos, não há separação entre juiz das garantias e juiz do julgamento, pois o próprio tribunal conduz o processo.


3. Tribunal do Júri

Processos que envolvem crimes dolosos contra a vida (como homicídio doloso, aborto, infanticídio e instigação ao suicídio) e que são julgados pelo Tribunal do Júri não terão a atuação do juiz das garantias, conforme decidido pelo STF.


4. Casos de violência doméstica e familiar

O STF também excluiu da atuação do juiz das garantias os crimes relacionados à Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), como lesão corporal, ameaça e violência psicológica praticados contra mulheres no âmbito familiar.

E onde ele se aplica?

Apesar das exceções acima, o STF deixou claro que o juiz das garantias deve atuar nos demais casos de investigação criminal, inclusive nos processos criminais da Justiça Eleitoral.

Resumo Rápido

Situação Aplica o Juiz das Garantias?
Infrações de menor potencial ofensivo ❌ Não
Processos de competência originária de tribunais ❌ Não
Tribunal do Júri (crimes dolosos contra a vida) ❌ Não
Violência doméstica e familiar ❌ Não
Processos criminais comuns ✅ Sim
Justiça Eleitoral (crimes eleitorais) ✅ Sim

O que decidiu o STF sobre o Juiz das Garantias?

1. Constitucionalidade Confirmada

O STF decidiu, por maioria de votos, que o Juiz das Garantias é constitucional e deve ser implementado em todo o Brasil, pois:

  • Reforça a imparcialidade do processo penal;

  • Protege os direitos fundamentais do investigado;

  • Está alinhado com o modelo acusatório previsto na Constituição Federal.

2. Prazo para Implementação

O STF fixou o prazo de 12 meses para que os tribunais implantem o Juiz das Garantias, a partir da data de publicação da ata do julgamento. Além disso, o Tribunal autorizou a prorrogação desse prazo por mais 12 meses, caso os tribunais justifiquem a necessidade.

3. Casos em que NÃO se aplica

O STF decidiu restringir a aplicação do Juiz das Garantias, excluindo sua atuação nos seguintes casos: primeiro, nas infrações de menor potencial ofensivo; depois, nos processos julgados pelo Tribunal do Júri, que tratam de crimes dolosos contra a vida; além disso, nos casos de violência doméstica e familiar; e, por fim, nos processos cuja competência é originária dos tribunais, como aqueles envolvendo autoridades com foro privilegiado.

Em contrapartida, o STF determinou a aplicação do Juiz das Garantias nos processos criminais da Justiça Eleitoral.

4. Principais Modificações e Interpretações do STF

🔹 Art. 3º-C – Cessação da Competência

Originalmente, o legislador previa que a atuação do Juiz das Garantias cessaria com o recebimento da denúncia.
Contudo, o STF decidiu modificar esse entendimento e estabeleceu que a atuação se encerra com o oferecimento da denúncia.
Com essa decisão, o STF permitiu que o juiz da instrução analise o inquérito policial, o que, por consequência, reduz a separação entre a fase investigativa e a fase de julgamento.

🔹 Autos do Inquérito (Art. 3º-C, §§ 3º e 4º)

O STF declarou inconstitucionais os dispositivos que impediam o envio dos autos da investigação ao juiz da instrução.
Com isso, o juiz responsável pelo julgamento passa a ter acesso aos elementos colhidos na fase investigativa, o que gerou críticas por possibilitar a contaminação do julgador com provas colhidas antes do processo.

🔹 Audiência de Custódia por Videoconferência (Art. 3º-B, §1º)

Embora a lei originalmente proibisse o uso de videoconferência, o STF flexibilizou essa regra.
 O Tribunal autorizou a realização por videoconferência em situações excepcionais, desde que haja impossibilidade prática de conduzir a audiência presencialmente.

🔹 Audiência Pública e Oral (Art. 3º-B, VI e VII)

A norma previa a obrigatoriedade da audiência pública e oral.
Entretanto, o STF afastou essa exigência, decidindo que a audiência deve ocorrer preferencialmente de forma pública e oral, mas não obrigatoriamente.

🔹 Prorrogação do Inquérito e Relaxamento da Prisão (Art. 3º-B, §2º)

Segundo a redação original, o juiz poderia prorrogar o inquérito uma única vez, e, ao final do prazo, a prisão deveria ser automaticamente relaxada.
No entanto, o STF rejeitou essa limitação e definiu que o juiz das garantias pode autorizar novas prorrogações e que não há relaxamento automático da prisão, desde que haja justificativa legal.

🔹 Rodízio de Juízes (Art. 3º-D, Parágrafo Único)

O STF considerou inconstitucional o dispositivo que determinava a criação obrigatória de sistema de rodízio de juízes em comarcas com apenas um magistrado.
 A Corte entendeu que essa exigência invade a autonomia dos Estados e afeta a organização da magistratura, violando o artigo 125 da Constituição Federal.

🔹 Designação x Investidura (Art. 3º-E)

O STF substituiu o termo “designado” por “investido” para reforçar a institucionalização do cargo de juiz das garantias. Com essa mudança, o Tribunal afirmou que o magistrado deve assumir a função de forma estruturada, conforme as normas de organização judiciária.

🔹 Tratamento Digno ao Preso (Art. 3º-F)

O STF manteve integralmente a validade do dispositivo que impõe ao juiz das garantias o dever de zelar pela dignidade do preso.
 Dessa forma, o juiz deve impedir qualquer acordo entre autoridades e a imprensa para expor indevidamente a imagem da pessoa presa, garantindo respeito à sua integridade física e moral.

Em resumo: principais pontos decididos pelo STF

Tema Decisão do STF
Constitucionalidade do juiz das garantias ✅ Sim, é constitucional
Implementação Obrigatória em até 12 meses (+12 prorrogáveis)
Casos em que não se aplica Menor potencial ofensivo, júri, violência doméstica, competência originária
Cessação da competência No oferecimento (não no recebimento) da denúncia
Autos do inquérito Serão compartilhados com juiz da instrução
Audiência de custódia por videoconferência Permitida em casos excepcionais
Audiência pública e oral Preferencial, não obrigatória
Prorrogação do inquérito e prisão Prorrogações múltiplas possíveis, sem relaxamento automático
Sistema de rodízio de juízes ❌ Inconstitucional
Expressão “designado” Substituída por “investido”
Exposição do preso à imprensa Vedada, com preservação da dignidade

Dispositivos do CPP declarados inconstitucionais pelo STF

🔴 Art. 3º-C, § 3º

Redação original: Determinava que os autos da investigação ficariam cautelados na secretaria do juízo das garantias e não seriam repassados ao juiz da instrução e julgamento.

Por que foi declarado inconstitucional?

  • O STF entendeu que impedir o juiz do julgamento de acessar os autos viola o devido processo legal e compromete a coerência da persecução penal.

🔴 Art. 3º-C, § 4º

Redação original: Garantia às partes acesso aos autos cautelados na secretaria do juiz das garantias.

Por que foi declarado inconstitucional?

  • Como o §3º foi considerado inconstitucional, o §4º também foi invalidado por perda de objeto (não haveria mais autos cautelados).

🔴 Art. 3º-D (caput)

Redação original: Estabelecia que o juiz que atuasse na investigação (art. 4º e 5º do CPP) ficaria impedido de atuar no processo.

Por que foi declarado inconstitucional?

  • O STF entendeu que o dispositivo presumia a parcialidade do juiz e interferia na organização da magistratura, ferindo o princípio do juiz natural.

🔴 Art. 3º-D, parágrafo único

Redação original: Impunha aos tribunais o dever de criar sistema de rodízio de juízes em comarcas com apenas um magistrado, para viabilizar o juiz das garantias.

Por que foi declarado inconstitucional?

  • Viola a autonomia dos Estados e a competência constitucional para organizar sua Justiça (art. 125 da Constituição).

🔴 Expressão “designado” no Art. 3º-E

Redação original: O juiz das garantias seria “designado” conforme normas de organização judiciária.

Decisão do STF: O STF substituiu a expressão “designado” por “investido” para reforçar o caráter institucional e permanente da função, além de evitar o risco de uma escolha discricionária.

Dispositivos que foram mantidos, mas com interpretação conforme

Além dos artigos declarados inconstitucionais, o STF manteve alguns dispositivos, contudo com restrições ou ajustes específicos.

Em relação ao art. 3º-B, §§ 1º e 2º, que trata da audiência de custódia e da prorrogação do inquérito, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a videoconferência poderá ser utilizada de forma excepcional, desde que haja justificativa plausível. Além disso, o STF admitiu prorrogações sucessivas do inquérito e afastou a aplicação automática do relaxamento da prisão prevista na redação original.

Já no que se refere aos incisos VI e VII do art. 3º-B, que versam sobre a audiência pública e oral, o STF entendeu que sua realização deve ser preferencial, porém não obrigatória, adequando-se às circunstâncias do caso concreto.

Resumo dos dispositivos declarados inconstitucionais

Dispositivo Motivo da Inconstitucionalidade
Art. 3º-C, §3º Impedia envio dos autos ao juiz da instrução
Art. 3º-C, §4º Perda de objeto após inconstitucionalidade do §3º
Art. 3º-D (caput) Impedimento automático do juiz fere o juiz natural
Art. 3º-D, parágrafo único Violava a autonomia dos Estados (organização da Justiça)
Termo “designado” no Art. 3º-E Substituído por “investido” por insegurança jurídica

Considerações Finais

Embora a criação do Juiz das Garantias represente um avanço teórico, o STF, ao permitir o acesso do juiz da instrução aos autos, atenua a proposta original. Por fim, a implementação obrigatória exige mudanças estruturais, afetando diretamente a atuação de juízes, promotores e defensores.

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